"O Espiritismo é uma doutrina filosófica de efeitos religiosos como qualquer filosofia espiritualista, pelo que forçosamente vai encontrar-se com as bases fundamentais de todas as religiões: Deus, a Alma e a Vida futura. Mas não é uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos reais, nenhum tomou o título de sacerdote ou de sumo sacerdote (...). O Espiritismo proclama a liberdade de consciência como direito natural; proclama-a para seus adéptos assim como para todas as pessoas. Respeita todas as convicções sinceras e faz questão de reciprocidade." (Kardec)


quinta-feira, 7 de outubro de 2010

No dia 09 de outubro de 1861, ocorria em Barcelona a queima de 300 livros espíritas, ato que ficou conhecido como o "Auto de Fé de Barcelona"

(Gravura da época representando a queima dos livros espíritas
que ficou conhecida como o "Auto-de-fé de Barcelona")

O Auto de Fé de Barcelona foi a queima, em praça pública, na cidade de Barcelona, na Espanha, na data de 09 de outubro de 1861, de 300 exemplares espíritas que Allan Kardec havia remetido ao livreiro Mauricio Lachâtre.

A expressão "Auto de Fé de Barcelona" foi notabilizada por Kardec para se referir ao ato da queima dos livros e foi utilizada pela primeira vez no subtítulo do artigo "O resto da Idade Média", publicado na "Revue Spirite" (Revista Espírita), daquele ano de 1861.

Quem nos narra os acontecimentos é o próprio Kardec, em dois relatos no livro "Obras Póstumas", 2ª parte, sendo um do dia 21 de setembro de 1861 e o outro do dia 09 de outubro do mesmo ano, ou seja, do dia do ocorrido:

"21 de setembro de 1861,
(Em minha casa; médium: Sr. d'A...)

          A pedido do Sr. Lachâtre, então residente em Barcelona, eu lhe enviara certa quantidade de "O Livro dos Espíritos", de "O Livro dos Médiuns", das coleções da "Revista Espírita", além de diversas obras e brochuras espíritas, perfazendo um total de cerca de 300 volumes. A expedição da encomenda fora regularmente feita pelo seu correspondente em Paris, num caixão que continha outras mercadorias e sem a menor infração da legalidade. À chegada dos livros, fizeram que o destinatário pagasse os direitos de entrada, mas, antes de os entregarem, houve que ser entregue uma relação das obras ao bispo, pois, naquele país, a polícia de livraria competia à autoridade eclesiástica. O bispo se achava então em Madri. Ao regressar, tomando conhecimento da relação dos livros, ordenou que eles fossem apreendidos e queimados em praça pública pela mão do carrasco. A execução da sentença foi marcada para 9 de outubro de 1861.           Se se houvesse tentado introduzir aquelas obras como contrabando, a autoridade espanhola teria o direito de dispor delas à sua vontade; mas, desde que absolutamente não havia fraude, nem surpresa, como o provava o pagamento espontâneo dos direitos, fora de rigorosa justiça que se ordenasse a reexportação dos volumes, uma vez que não convinha se lhes admitisse a entrada. Ficaram, porém, sem resultado as reclamações apresentadas por intermédio do Cônsul francês em Barcelona. O Sr. Lachâtre me perguntou se valeria a pena recorrer à autoridade superior. Opinei por que se deixasse consumar o ato arbitrário; entendi, porém, acertado ouvir a opinião do meu guia espiritual.
           Pergunta (à Verdade) - Não ignoras, sem dúvida, o que acaba de passar-se em Barcelona, com algumas obras espíritas. Quererás ter a bondade de dizer-me se convirá prosseguir na reclamação para restituição delas?
           Resposta - Por direito, podes reclamá-las e conseguirias que te fossem restituídas, se te dirigisses ao Ministro de Estrangeiros da França. Mas, ao meu parecer, desse auto-de-fé resultará maior bem do que o que adviria da leitura de alguns volumes. A perda material nada é, a par da repercussão que semelhante fato produzirá em favor da Doutrina. Deves compreender quanto uma perseguição tão ridícula, quanto atrasada, poderá fazer a bem do progresso do Espiritismo na Espanha. A queima dos livros determinará uma grande expansão das idéias espíritas e uma procura febricitante das obras dessa doutrina. As idéias se disseminarão lá com maior rapidez e as obras serão procuradas com maior avidez, desde que as tenham queimado. Tudo vai bem.
           Pergunta - Convirá que eu escreva a respeito um artigo para o próximo número da Revista?
          Resposta - Espera o auto-de-fé."


"09 de outubro de 1861,
(Auto-de-fé em Baecelona)

          Esta data ficará assinalada nos anais do Espiritismo, por motivo do auto-de-fé praticado com os livros espíritas em Barcelona. Eis aqui um extrato da ata da execução:
          'Neste dia, nove de outubro de mil oitocentos e sessenta e um, às dez horas e meia da manhã, na esplanada da cidade de Barcelona, no local onde são executados os criminosos condenados ao derradeiro suplício e por ordem do bispo desta cidade, foram queimados trezentos volumes e brochuras sobre o Espiritismo, a saber: A Revista Espírita, diretor Allan Kardec; A Revista Espiritualista, diretor Piérard; O Livro dos Espíritos, por Allan Kardec; O Livro dos Médiuns, pelo mesmo; O que é o Espiritismo, pelo mesmo; Fragmento de sonata, ditado pelo Espírito de Mozart; Carta de um católico sobre o Espiritismo, pelo doutor Grand; A História de Jeanne d'Arc, ditada por ela mesma à Srta. Ermance Dufau; A realidade dos Espíritos demonstrada pela escrita direta, pelo barão de Guldenstubbé.'

*(Conta-se ainda que assistiram ao auto-de-fé um padre revestido das roupas sacerdotais, trazendo a cruz numa mão e a tocha na outra mão; um notário encarregado de redigir a ata do auto-de-fé; o escrevente do notário; um empregado superior da administração da alfândega e três moços (serventes) da alfândega, encarregados de manter o fogo; um agente da alfândega, representando o proprietário das obras condenadas pelo bispo. Também uma multidão inumerável encontrava-se sobre os passeios e cobria a imensa esplanada onde se elevava a fogueira. Quando o fogo consumiu os trezentos volumes ou brochuras Espíritas, o padre e seus ajudantes se retiraram, cobertos pelas vaias e as maldições dos numerosos assistentes que gritavam: Abaixo a inquisição! Numerosas  pessoas, em seguida, se aproximaram da fogueira, e recolheram as suas cinzas.)

          Os principais jornais da Espanha deram conta minuciosa do fato, que os órgãos da imprensa liberal do país muito justamente profligaram. É de notar-se que na França os periódicos liberais se limitaram a mencioná-lo sem comentários. O próprio Século, tão ardoroso em estigmatizar os abusos do poder e os menores atos de intolerância do clero, não achou uma palavra de reprovação para esse ato digno da Idade Média. Alguns jornais da pequena imprensa acharam mesmo no caso motivo para risota. Pondo de parte o que diz respeito à crença, havia ali uma questão de princípio, de direito internacional, que interessava a todo o mundo, sobre a qual não teriam tão levianamente guardado silêncio, se se tratasse de certas outras obras. Eles não se furtam de censuras, quando está em causa a simples exigência de uma estampilha para venda de um livro materialista; ora, o restaurar a Inquisição as suas fogueiras com a solenidade de outrora, às portas da França, apresentava bem maior gravidade. Por que, então, semelhante indiferença? É que estava em jogo uma doutrina a cujos progressos a incredulidade assiste com pavor. Reivindicar justiça para ela fora consagrar-lhe o direito à proteção da autoridade e aumentar-lhe o crédito. Seja como for, o auto-de-fé em Barcelona não deixou de produzir o esperado efeito, pela repercussão que teve na Espanha, onde contribuiu fortemente para propagar as idéias espíritas. (Veja-se a Revista Espírita de novembro de 1861, pág. 321).
           O acontecimento abriu ensejo a muitas comunicações da parte dos Espíritos. A que se segue foi dada espontaneamente na Sociedade de Paris, a 19 de outubro, quando regressei de Bordéus:
           'Fazia-se mister alguma coisa que chocasse com violência certos Espíritos encarnados, para que se decidissem a ocupar-se com essa grande doutrina, que há de regenerar o mundo. Nada, para isto, se faz inutilmente na Terra e nós que inspiramos o auto-de-fé em Barcelona, bem sabíamos que, procedendo assim, forçávamos um grande passo para frente. Esse fato brutal, inaudito nos tempos atuais, se consumou tendo por fim chamar a atenção dos jornalistas que se mantinham indiferentes diante dá agitação profunda que abalava as cidades e os centros espíritas. Eles deixavam que falassem e fizessem o que bem entendessem; mas, obstinavam-se em passar por surdos e respondiam com o mutismo ao desejo de propaganda dos adeptos do Espiritismo. De bom ou mau grado, hoje falam dele; uns, comprovando o histórico do fato de Barcelona; outros, desmentindo-o, ensejaram uma polêmica que dará volta ao mundo, de grande proveito para o Espiritismo. Essa a razão por que a retaguarda da Inquisição fez hoje o seu último auto-de-fé. É que assim o quisemos.
(Um Espírito)'

Nota - De Barcelona enviaram-me uma aquarela feita in loco por um artista distinto, representando a cena do auto-de-fé. Mandei fazer do quadro uma redução fotográfica. Possuo também um pouco de cinza apanhada na fogueira, onde se encontram fragmentos ainda legíveis de folhas queimadas. Conservei-os numa urna de cristal."

(Do livro "Obras Póstumas", de Allan Kardec, FEB)

*Zeus Wantuil, no artigo "Centenário de um auto-de-fé", em Reformador de 1961, pp.217/21, informa que a urna foi destruída pelos nazistas na 1ª Grande Guerra.

 
Ainda sobre os fatos, Kardec escreveu o seguinte artigo na Revue Spirite:

           "Se examinarmos este processo sob o ponto de vista de suas consequências, desde logo vemos que todos são unânimes em dizer que nada podia ter sido mais útil para o Espiritismo. A perseguição foi sempre vantajosa à idéia que se quis proscrever; por esse meio exalta-se a importância da idéia, chama-se a atenção para ela, e faz-se que seja conhecida daqueles que a ignoram. Graças a esse zelo imprudente, todos na Espanha ouvirão falar de Espiritismo e quererão saber o que ele é, e isto é o que desejamos.
          Porém, queimam-se livros, mas não se queimam idéias; as chamas das fogueiras as superexcitam, em vez de extingui-las. Ademais, as idéias estão no ar, e não há Pireneus bastante elevados para detê-las; e quando é grande e generosa uma idéia , encontra milhares de corações dispostos a almejá-la. Façam o que quiserem, o Espiritismo já possui numerosas e profundas raízes na Espanha; as cinzas dessa fogueira as multiplicarão. Não é só na Espanha, porém, que se obterá esse resultado: os efeitos da repercussão do fato o mundo inteiro os sentirá."

Na Revista Espírita de agosto de 1862, Kardec ainda relata que o Bispo que mandou queimar os livros espíritas desencarnou no dia 09 de agosto daquele ano, ou seja, um pouco mais de 9 meses após o ato, e que dá uma comunicação espontânea por um dos médiuns à Kardec, respondendo-lhe às perguntas que tinha preparado mas que não necessitou fazê-las porque o bispo se antecipara. Ele diz: "Orai por mim; orai, porque ela é agradável a Deus, a prece que lhe dirige o perseguido pelo perseguidor". E termina dizendo: "Aquele que foi bispo e que não é mais que um penitente."


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Poste aqui seu comentário. Obrigada pela colaboração!